Quis pagar em dinheiro e não me deixaram
A lei não o permite, mas há lojas que já não aceitam pagamentos em numerário.
A DECO diz que isso pode excluir os consumidores mais vulneráveis e pondera pedir uma sanção ao Banco de Portugal.
Os profetas do digital dizem que dentro de cinco anos (na melhor das hipóteses), uma geração, ou duas, vá, as compras em dinheiro nas lojas físicas vão acabar.
Sendo resistente às novas tecnologias – não me rendi ao MB Way, nunca fiz pagamentos por homebanking, nem encomendei refeições na Uber Eats ou chamei um táxi por app – é difícil para mim imaginar um mundo de caixas registadoras sem moedas e notas.
Mas a era que aí vem contraria-me, e a outros analógicos: chama-se cashless, quer dizer transações sem numerário. Em Portugal, já há exemplos, embora tímidos, desde a pandemia.
Fomos testá-los, com a carteira na mão e o cartão no bolso.
Primeira paragem: mercado de Campo de Ourique.
Vou à padaria Gleba e não olho para o aviso de recusa de pagamentos em numerário.
Tenho duas pessoas à frente. Quando chega a minha vez, peço um pão de espelta médio, que custa €3,29.
"Tem de ser mesmo multibanco"
Prontamente, abro o porta-moedas e digo:
“Tenho moedas.
” O funcionário responde:
“Tem de ser mesmo multibanco.
” Insisto:
“Vi agora o aviso de que não aceitam.
O pagamento em dinheiro é universal e de aceitação obrigatória.
É possível falar com o gerente?”
Remetem-me para o email da empresa.
Acabei por comprar o pão com cartão de débito – sem contactless.
Assumo que desconfio desta inovação, por eventuais furtos; à época pedi uma segunda via para a versão original.
Digito o pin e saio
Gleba significa “terreno para cultivar”, rejeita dinheiro vivo mas nem por isso perde clientes.
Conta produzir, desde o início de 2022 até ao final do ano, 4,4 milhões de pães – no total das oito lojas espalhadas por Lisboa, Carnaxide, Oeiras e Cascais.
É a exceção entre as 16 bancas de restaurantes do mercado, umas quantas gourmet e tradicionais (frescos, talho e peixaria), que aceitam as duas formas de pagamento: multibanco e numerário (“até fiado e criptomoedas”, brinca um comerciante, quando questionado).
Sendo que o MB Way tem ganho expressão pela crise sanitária, segundo o diretor de marketing do recinto, Tomás Amaral.
Deve ser acordo, não imposição
Numa pesquisa ao Portal da Queixa, encontro reclamações à Gleba, pela limitação dos meios de pagamento. O fundador do portal, Pedro Barros Lourenço, esclarece à SÁBADO:
“Existem orientações inequívocas por parte da Comissão Europeia [CE], dando nota que os comerciantes não podem recusar pagamentos em numerário, a menos que as partes tenham acordado entre si outros meios de pagamento.”
O aviso junto à máquina registadora não será suficiente?
“Este acordo entre as partes não pode figurar apenas com a afixação de uma mensagem aos clientes, sob pena de representar uma imposição e não um acordo.
A sensatez deve imperar, por parte das empresas, com vista à satisfação das expectativas dos seus clientes e não como conveniência na gestão diária das operações dos comerciantes.”
No caso, verificam-se “justificações assentes no risco para a saúde dos comerciantes, resultantes da pandemia”, acrescenta o perito.
Só que a razão aceite pela recomendação da CE para a recusa “visa apenas riscos de segurança física, relacionados com grandes montantes em numerário no seu estabelecimento, e não relativas à circunstância da transmissão do vírus.
” Assim remata:
“Não se configuram justificações plausíveis que impeçam os consumidores de pagarem as suas compras com recurso ao numerário.”
Nem a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) tem forma de agir, segundo fonte oficial: “Não existindo norma punitiva, a prática de recusa não configura infração.”
Sigo para a Ostraria Meroir, cuja banca está bem visível no pórtico central do mercado de Campo de Ourique.
A sócia-gerente Ana Luz, também a atender, regista o pedido – ostras em tempura feitas ao momento, por €12,5 – e diz-me: “Se tiver certinho dá.
” Mas não tenho.
Argumento que o dinheiro é de aceitação obrigatória.
Ela justifica-se:
“Nós aqui não temos meios.
Estou sozinha, a receber dinheiro e a cozinhar.
” Percebo, pago em cartão e tento saber mais sobre a caixa registadora high tech:
“Fomos dos primeiros a ter em Lisboa.
Funciona como um iPad
.” No final, admite:
“Já pedi à gráfica um aviso a dizer que preferimos pagamentos em cartões.”
Cartão pré-pago
Muita agitação, panelas a fervilhar, copos de vinho, magotes de turistas – e zero notas.
Dirijo-me a um restaurante e pergunto se aceitam dinheiro.
O caixa diz-me que não, que há quem reclame.
Mais adiante, um empresário do ramo conta-me como funciona: as caixas registadoras estão centralizadas.
FONTE Sábado
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